domingo, 6 de setembro de 2020

Não se deve ou devem dizer tais coisas?

 1) A questão é saber qual a construção correta: "Não se deve dizer tais coisas", ou "Não se devem dizer tais coisas"?


2) De acordo com Vitório Bergo, "em frases deste modelo, o verbo dever constitui, em regra, auxiliar do infinitivo que se lhe segue, sendo que a partícula se apassiva o todo verbal. Destarte, concorda aquele com o substantivo a que se refere o infinitivo e que é, em uma, o seu sujeito"1; em outras palavras, para tal autor a única forma correta seria: "Não se devem dizer tais coisas".


3) Anote-se, porém, que ambas as estruturas estão corretas, mas cada qual delas tem uma explicação própria2, devendo-se realçar, desde logo, que ambas estão na voz passiva.


4) No primeiro exemplo ("Não se deve dizer tais coisas"), a expressão é uma falsa locução verbal, quando, na verdade, são dois verbos autônomos; o verbo da oração principal é deve, e o seu sujeito é oracional reduzido (oração subordinada substantiva subjetiva reduzida de infinitivo) – dizer tais coisas - , aspecto esse que facilmente se percebe, quando se põe o período em ordem direta ("Dizer tais coisas não se deve"), ou mesmo quando se passa o exemplo, que está na voz passiva sintética, para a voz passiva analítica ("Dizer tais coisas não é devido"). Observa-se que, sendo fraseológico o sujeito, deixa ele o verbo no singular, e se acrescenta, apenas para complementar, que o se, no caso, é partícula apassivadora.


5) No segundo exemplo ("Não se devem dizer tais coisas"), a expressão devem dizer é uma locução verbal (sendo devem o verbo auxiliar e dizer o principal). O se aqui também funciona como partícula apassivadora, e tais coisas é o sujeito de uma voz passiva sintética, cuja voz passiva analítica assim se constrói: "Tais coisas não devem ser ditas". Em ambas as vozes passivas (sintética e analítica), o sujeito é tais coisas, e tal sujeito, por estar no plural, leva também o verbo para esse número, quer na passiva sintética, quer na passiva analítica.


6) Anote-se, todavia, para registro, a lição restritiva de Eduardo Carlos Pereira no sentido de que, em frases como a considerada, quando o verbo está no plural, as frases estão corretas, "manifestamente apassivadas pela partícula se", e tais coisas é o sujeito do verbo perifrástico.


7) Para tal autor, entretanto, muito embora ressalve que o emprego do verbo no singular se encontre, ainda que raramente, em alguns escritores, "tal concordância, todavia, é insegura", pois "só teria sua justificação no caso de ser o se sujeito".


8) Ultima ele suas observações com o lembrete de que, "em outras locuções do infinitivo, em que se vê claramente ser este o sujeito do verbo no modo finito, dá-se a concordância no singular", alinhando, dentre outros, dois exemplos de João Ribeiro: a) "Quer-se inverter leis"; b) "Intenta-se demolir aqueles muros".3


9) Ressalve-se, todavia, que o se jamais poderia ser sujeito em tal expressão, já que, como acentuado, em ambas as estruturas é ele partícula apassivadora.


10) Em continuação, o ensino de Júlio Nogueira se dá no sentido de que, muito embora se encontrem exemplos de construção no singular, é preferível, sobretudo por eufonia, a concordância no plural, além de mais habitual nos clássicos.4


11) Domingos Paschoal Cegalla, sem considerações teóricas acerca do assunto, considera, por um lado, "boa concordância dizer" Podem–se colher as frutas; por outro lado, refere que "também é lícito, em construções desse tipo, deixar o verbo auxiliar poder no singular: Pode-se colher as frutas".5


12) Em observações ao art. 52 do Código Civil – que registra: "Coisas divisíveis são as que se podem partir em porções reais e distintas, formando cada qual um todo perfeito" – Luciano Correia da Silva, atento aos aspectos até agora analisados, leciona que também se poderia dizer: "Coisas divisíveis são as que se pode partir em porções reais e distintas...".


13) Segundo tal autor, entretanto, a frase assim dita haveria de ficar "sem o mesmo vigor e propriedade".6


14) Reitere-se, por fim, ante a própria análise da divergência entre os gramáticos e as aceitáveis justificativas para as duas sintaxes, que o melhor parece ser validar, em tais casos, ambas as construções: ou com o verbo no singular, ou com o verbo no plural.


15) De todas essas observações vê-se que estão igualmente corretas ambas as construções: I) – "Note como se pode eliminar quatro palavras"; II) – "Note como se podem eliminar quatro palavras".

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